Friday, December 22, 2006

Os últimos dias

Lá estava ela, deitada numa cama de hospital, olhando para a televisão esperando que o tempo passasse mais depressa. O quarto à sua volta estava vazio, já se tinham ido todas embora, umas mais cedo do que outras. Mas foram...só ela é que continuava ali, no quarto número 8 com quatro camas, três delas vazias. Ao menos estava ao lado da janela. Por vezes olhava o mundo lá fora, as pessoas cheias de stress de um lado para o outro, olhando para o relógio, correndo para apanhar o autocarro, carros a buzinarem, pessoas sem paciência para a vida... Era nestas alturas que ela sentia-se orgulhosa por ser velha. Podia estar doente, há dois anos enfiada numa cama de hospital mas tinha a completa noção que tinha vivido a vida com toda a intensidade, com toda a calma e tranquilidade.
"No meu tempo as pessoas olhavam à volta, procuravam ser felizes. aproveitavam todas as oportunidades que tinham para viverem bem e de uma maneira saudável. Bons tempos eram aqueles...Os jovens de hoje nem sabem a sorte que têm por estarem vivos e não aproveitam." pensava ela, remexendo nas suas memórias tão antigas.
A esperança já a tinha abandonado. Deixara de a alimentar, não valia a pena. Sempre fora uma mulher muito aventureira, uma mulher que gostava de um bom desafio, era raro ter medo de alguma coisa. Agora sabia que a única coisa que receava era a morte. A indesejada que se aproximava a passo de caracol, corroendo lentamente o seu corpo, enfraquecendo-o até ao último suspiro. Até há pouco nunca imaginara encontrar-se nesta situação. A morte sempre lhe parecera uma coisa tão inatingivel, impossivel de surgir, de lhe acontecer. Houve tempos que se sentia imortal. Mas a esperança, loucura, insanidade, o que quer que fosse que a prendia à ideia que nunca morreria já tinha abandonado a sua mente velha. Agora olhava para as suas mãos enrugadas, veias salientes e apercebia-se que a vida passara, finalmente. A longa caminhada chegara ao fim e agora era só aguardar pela chagada da indesejável morte. Não fazia mal, pensava a velha, o pensamento focado nos familiares que tinham deixado de visitá-la. Dantes as visitas eram constantes, a toda a hora, a todo o dia mas como tudo o que tem inicio, acaba, as visitas pararam de surgir. "já fizeram a boa acção de me visitar uma ou duas vezes, já vão para o céu. Esquecm-se que a velha fica cá sozinha" pensava a senhora desesperada, a solidão era quase insuportável.
Os filhos não a visitavam e um telefonema por semana era sinal de sorte. Que triste sina tinha ela de passar os seus últimos dias sozinha, sem visitas, telefonemas, apenas com a companhia das enfermeiras para o dia sair da sua rotina habitual: acordar, tomar o pequeno-almoço, ver televisão, lanchar, ver televisão, jantar e dormir.
O marido já tinha partido há cinco anos e desde então nunca mais se tinha conformado com a ideia de desaparecer pois para além de temer o desconhecido não queria de maneira nenhuma causar tanto sofrimento para os que ficam! "Ninguém vai sentir a minha falta" dizia ela para o quarto vazio "se não sentem a minha falta enquanto estou viva, quando estiver morta vai ser um alivio!" Era triste, mas lá no fundo ela sabia que era verdade, apesar de desejar do fundo do coração que alguém surgisse e dissesse "Que disparate Dona Constança, eu nem quero imaginar esses tempos! Ia sentira tantas saudades suas..." Podia até nem ser sincero mas era sempre bom ouvir. De repente, uma imagem surgiu do nada, o seu marido sorria-lhe, estava sentado na cama em frente. Ela sorriu-lhe também.
O enfermeiro Luís estava a organizar os arquivos quando olhou para trás e viu a enfermeira Filipa a chorar.
- O que se passa?
- A Dona Constança faleceu. Ela está ainda no quarto.Eu ia levar-lhe o almoço, conversar um pouco com ela. Mas quando cheguei já tinha ido...
O enfermeiro Luís dirigiu-se ao quarto número oito, abriu a porta e olhou para o corpo inanimado que outrora pertencera à Dona Constança, ela sorria.
Tanta gente tinha morrido em cima daquela cama mas o mais curioso de tudo é que ninguém tinha deixado tantas saudades naquele hospital como aquela senhora deixaria.

2 comments:

Cate said...

Boa história, Batatinha.
Há pessoas que têm o dom de nos marcar.

Beijinhos, amo-te.

Anonymous said...

q texto tão lindo, Mariana !
gosto tanto das coisas q escreves =) *